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Sabia-nos bem o sol inesperado naquela manhã de Fevereiro e, por isso, ficámos à porta da escola conversando, enquantonão tocava. Foi então que a directora me disse:
- Vais ter uma nova aluna!
- Eu? Então a minha turma não estava bloqueada, com tantos miúdos com deficiência comprovada?!
- Pois, é verdade... Mas sabes como é: a Leonor e a Sónia têm turmas grandes...- Está bem! Quem é? De onde vem?
- Há-de vir aí a tia para a trazer, chegou de Angola...
Não teve tempo para continuar, porque ali estavam, a menina e a tia, para iniciar o que seria a nova vida de Alícia. Quando a vi, estremeci. Muito pequenina e magrinha, não me pareceu que a minha turma, com alguns matulões de 12 e 13 anos, fosse o melhor grupo.
A tia falou, falou muito, contou tudo o que pôde no bocadinho que restava até ao toque de entrada: Alícia deixou mãe, pai e irmãos em Angola, agarrados a uma vida pobre de que dificilmente sairão. Ela, Roseta Kilombo, mandara vir a sobrinha-neta para lhe proporcionar uma vida melhor, mais calma pelo menos. Mulher de armas, a tia Roseta trabalhava desde muito cedo para sustentar os filhos e amparar amigos e vizinhos. Mais tarde vim a saber que era já quarentona, mas o riso fácil e o olhar, de tão vivo, iludiam a idade, guardando uma juventude que a dureza da vida não destruiu.
Alícia ficou connosco. Olhava para tudo e todos com a inquietude da novidade, esbugalhava os olhos enquanto chuchava no dedo e ria, ria sempre. Mas era um riso triste o de Alícia. Pior que o riso dela, só o silêncio: não falava com ninguém. Participava em todas as actividades, brincava e ria, mas não falava.
A pedido, lá veio a tia Roseta. Que não, que a menina não se queixava de nada. Que gostava de todos os colegas e da senhora professora também. Que ficara muito feliz com as lembranças que muitos lhe haviam trazido, à laia de boas-vindas. E, na verdade, não percebia esse caso estranho de a menina não falar ali na escola. Combinámos continuar ambas atentas e manter contacto estreito para a ajudar.
Um dia Alícia roubou o lugar ao Gelson, sentou-se a meu lado e ficou ali a trabalhar. Gelson, um malandrete à solta, tinha coração largo para os mais fracos e deixou-a ficar sem nada dizer. E Alícia encostou-se a mim. Empurrou-me devagar, devagarinho, até que a puxei para o colo. Abriu muito os olhos, mais brilhantes ainda na sua face negrinha, pôs o dedo na boca, semicerrou as pálpebras e, pouco depois, dormia.
O silêncio dos colegas, trabalhando com cuidado para a não acordar, foi, como em muitas outras ocasiões, prova da solidariedade, da alma generosa que crescia no peito destes meninos quase todos oriundos de um bairro de lata.
Quando tocou para a saída, Alícia acordou e começou a chorar. Desdobrámo-nos em cuidados à sua volta, ninguém percebia aquelas lágrimas... E a menina disse então a primeira palavra que pudemos ouvir-lhe, num lamento:
- Mãe!
Apertei-a mais contra mim. Quis ganhar tempo, não sabia que dizer-lhe, porque ninguém soube nunca consolar-me pela falta da minha mãe quando ela me deixou, menina ainda, para ir para o Céu em que eu queria acreditar. Que poderia eu dizer a uma pequenina de sete anos que sente saudades de sua mãe e a sabe do outro lado do mar?
Foram os colegas quem tentou salvar a situação:
- Todos gostam de ti, Alícia. Os teus primos, os colegas, os amigos todos. A tia Roseta trata-te tão bem...
- Mas a mãe dava colinho...
Desde então, Alícia fala muito e cada vez mais. O dia do colinho (melhor, o primeiro dia do colinho, porque muitos se lhe seguiram) marcou o nosso calendário: agora, tudo se divide entre antes e depois de Alícia falar.
Cristina Silveira de Carvalho
Professora do 1.º ciclo
2010-04-26
Fonte: http://www.educare.pt/educare/Opiniao.Artigo.aspx?contentid=7803CC2C1380DB46E0400A0AB8002557&opsel=2&channelid=0
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