Certa manhã, o meu pai convidou-me a dar um passeio pelo bosque e aceitei com alegria, porque sair com ele era grandioso para mim. Partilhava comigo muitas coisas da sua vida: a sua experiência, as suas anedotas de quando ele tinha doze anos, tal como eu agora. De repente, ele deteve-se no meio do bosque e disse-me:
- Guarda silêncio e escuta. Que ouves?
Pus os meus ouvidos atentos durante uns segundos e respondi:
- O canto dos pássaros!
- E não ouves mais nada? – Perguntou-me.
Pus mais atenção e disse:
-Sim, ouço o barulho de uma carroça pelo caminho.
- Isso mesmo – respondeu-me o meu pai – é uma carroça vazia.
Então perguntei-lhe:
- Como sabes que é uma carroça vazia se não a vemos?
- É muito fácil saber quando uma carroça está vazia, por causa do barulho. Quanto mais vazia está a carroça maior é o barulho que faz – disse o meu pai.
Fiz-me adulto; e até ao dia de hoje quando vejo uma pessoa tagarela, a falar muito alto, prepotente, querendo ser o centro, fazendo notar que sabe tudo, recordo-me do que me ensinou o meu pai:
- Quanto mais vazia está a carroça, maior é o barulho que faz.
No passado domingo, enquanto passava a ferro, e na sequência das «propostas indecentes» que fui fazendo a alguns colegas para se juntarem ao CRIA, em regime de voluntariado, propostas essas que foram aceites, na sua maioria, de imediato e sem qualquer hesitação, dei comigo a pensar em qual seria a melhor maneira de motivar todos os professores da ESA a embarcarem nesta aventura solidária, e eis que o almoço de Natal me pareceu uma excelente oportunidade.
Antes, porém, não posso deixar de alertar para o seguinte: as palavras que se seguem só podem ser entendidas com o coração. Assim como Antoine de Saint-Exupéry, através do Principezinho, nos diz que os olhos são cegos e que, por essa razão, devemos procurar com o coração, assim vos digo eu, as minhas palavras só serão entendidas por aqueles que escutam com o coração.
Durante toda a minha vida questionei o sentido da minha própria vida. Procurei algo que fizesse sentido. Precisava desesperadamente de me sentir útil. De encontrar uma causa pela qual valesse a pena lutar. Diferente? Idealista? Insatisfeita? Louca? Talvez! Mas, como diz Fernando Pessoa, «Sem a loucura que é o homem/ Mais que a besta sadia/ Cadáver adiado que procria?».
Procurei em Timor. Procurei em África. No entanto, por ironia do destino, onde é que encontrei essa causa? Onde sempre esteve, em Portugal, tão próxima que não fui capaz de enxergá-la!
Há vinte e dois anos que dou aulas e há uns dois ou três anos a esta parte que tenho sentido uma vontade irresistível de abandonar o ensino. No entanto, um belo dia, em que me queixava do estado a que o ensino tinha chegado, eis que a minha grande amiga Maria João Bandeira, serenamente, me disse que se eu queria, de facto, mudar alguma coisa, estava no sítio certo, na escola, junto de jovens.
Aquelas palavras fizeram eco cá dentro. Era verdade. Era óbvio. Tão óbvio! E eu estive cega durante tanto tempo!
Passados uns tempos, uma colega veio ter comigo, uma colega com quem raramente me cruzava, Albertina Pereira, hoje minha amiga, para me perguntar se eu não estaria interessada em frequentar uma acção de formação subordinada ao tema A Tutoria: Funções e Perfis dos Professores Tutores, um Círculo de Estudos, que ia começar dentro em breve. Sem grande entusiasmo, acabei por aceitar. Assim como assim, precisava de créditos… (Obrigada, Albertina, por me teres convidado!)
Ao fim de dezassete sessões de formação, o CRIA (Centro de Reflexão, de Intervenção e de Aquisição) nascia. A minha causa, a causa pela qual valia a pena lutar! (Obrigada, Célia, obrigada Tina, obrigada Ana, obrigada Eugénia, obrigada Paula, obrigada Mariana, obrigada Albertina, obrigada Cristina por tudo aquilo que aprendi convosco nessas sessões e em tantas outras).
Obrigada, Simão, enquanto pessoa e director da ESA, por teres acreditado…!
Quando começámos, éramos apenas oito. Fomos crescendo, crescendo e hoje não tenho a certeza de quantos somos, pois todos os dias “entra” um colega novo, que aceita trabalhar voluntária e colaborativamente. De qualquer maneira, o nosso objectivo é que todos os professores da Escola Secundária de Amora, espontaneamente, sejam tutores de, pelo menos, um aluno.
- São muito ambiciosos! Dizem uns.
- São loucos! Dizem outros.
- Não têm mais nada para fazer! Dizem os «Criacépticos» (estou a usar o teu termo, Adolfo, mas com aspas, não te preocupes).
Sim! Somos ambiciosos.
Sim! Somos loucos.
Mas, não diz o adágio popular que de poetas e de loucos todos temos um pouco?
É um trabalho muito gratificante. Tão gratificante, que, se pudesse, dedicar-me-ia apenas a ele.
Há duas décadas que ouço constantemente:
- Os alunos faltam!
- Os alunos não fazem nada!
- Os alunos não sabem nada!
- Os alunos não têm modos!
Os problemas estão diagnosticados há muito tempo. Todos sabemos quais são. Não podemos continuar a acusar os outros e a esperar que sejam eles a resolver os problemas. Enquanto os outros resolvem e não resolvem, somos nós, professores, que temos os problemas dentro da sala de aula. Então, só nos resta mesmo, contribuir para a sua solução. E o programa de tutorias é apenas uma proposta que pretende ser parte da solução.
Ou continuamos a acusar o aluno, o encarregado de educação do aluno, o director de turma, o director da escola, a ministra da educação, destilando veneno, com o qual nos envenenamos a nós próprios e aos outros, ou nos unimos numa comunidade formativa, de uma vez por todas, deixando de lado as nossas idiossincrasias, apostando na pedagogia do amor.
Nunca antes fora tutora de ninguém. Neste momento, tenho cinco tutorandos. E não tenho mais porque não posso. Sou professora, por opção. Burocrata, por imposição. E, como tal, não me resta muito mais tempo.
Por isso, decidi partilhar estas palavras convosco, de modo a motivar-vos a adoptar um «filho»/uma «filha» na escola. Sim, «filho»! E logo eu que não tive filhos por opção! O meu primeiro «filho», logo na primeira sessão, depois de lhe explicar qual era o meu papel, virou-se para mim e disse: «- Ah, já tou a ver. Eu nunca tive uma tutora, mas uma tutora é como se fosse uma segunda mãe, uma mãe na escola!».
A minha «filha», na última sessão, disse-me: «Gostava tanto que a minha amiga (outra aluna sinalizada, cujo nome também não vou divulgar, por motivos óbvios) estivesse aqui comigo a ouvi-la».
O meu terceiro «filho», após um mês de ausência (depois de uma suspensão, de uma greve e de dois feriados), por iniciativa própria, veio ter comigo, não só para me comunicar que não podia estar comigo na última sessão, explicando-me o motivo, como também me trazia, numa mica, uma folha A4 com o trabalho que lhe havia pedido há um mês e que, por momentos, eu própria já tinha esquecido. Mas ele não!
A minha quarta «filha», embora, ainda, rejeite vir às aulas, porque, entre outras razões, não suporta a sua turma (CEF), veio à sessão da última semana e comprometeu-se a fazer os trabalhos que lhe pedi (e não foram poucos…).
O meu quinto e último «filho», o mais novo, que conheci apenas há duas semanas, já me prometeu que vai mudar. Na segunda sessão reconheceu, pelo menos, que não se portava bem. Isto não é já meio caminho andado?
São cinco «filhos» muito diferentes. São cinco desafios muito aliciantes. Não sei se estarei à altura… Mas uma coisa é certa, trata-se de um trabalho muito aliciante e muito gratificante, vos garanto! Basta estar lá. Basta que eles saibam que estamos lá por causa deles e para eles. A nossa atenção, a nossa preocupação, o nosso amor (não há que recear a palavra), na fase inicial, é o suficiente.
Não conseguirei nunca pôr em palavras aquilo que sinto, mas convido-vos a visionar o filme Páginas de Liberdade, a história verídica de como uma professora, nos Estados Unidos da América, conseguiu conquistar e unir uma turma (que podia muito bem ser uma turma CEF), e que retrata exemplarmente aquilo que o CRIA pretende, no geral, e aquilo que pretende, de uma maneira muito especial, para a ESA.
Desafio-vos, pois, agora, a visionar o filme, depois, no segundo período, a juntarem-se ao CRIA. Os nossos alunos precisam de vocês!